Opinião

Tango, samba e extrema direita

Javier Milei jura de pés juntos que é devoto de Tatcher e Reagan, mas no seu altar de orações reza mesmo é para Bolsonaro e Trump

Por Felipe Sampaio

Florencia Garramuño publicou “Brasil Canìbal, entre la bossa nova y la extrema derecha” em 2019, enquanto Jair Bolsonaro chegava ao Palácio do Planalto, menos de 35 anos após o Brasil destronar uma ditadura. Parecia antever o risco de que, em sua própria Argentina, Javier Milei repetisse o êxito da nossa extrema direita, recolocando-a na Casa Rosada em 2023.

Quando a escritora ainda brincava nas ruas de Rosario, nos anos 1960, nem nas suas fantasias de menina poderia imaginar que a Argentina estaria bailando esta semana um de seus tangos mais dramáticos. Muito menos sabia que haveria tantas similaridades por vir entre a Terra da Prata e a Ilha da Vera Cruz.

Na sua infância, a cidade de Rosario ainda era conhecida como a Chicago argentina, talvez devido ao boom da indústria frigorífica no final do século XIX, ou quem sabe pela chegada da máfia italiana em 1930. Hoje, a cidade berço da independência nacional mais parece com o nosso Rio de Janeiro, não pelas belezas naturais, mas sim pelo flagelo de um novo narcotráfico.

Florencia formou-se em Letras em Buenos Aires, estudou em Princeton, mas veio concluir seus estudos avançados no Brasil, obtendo pós-doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi professora na Universidade Federal de Minas Gerais e na PUC Rio. Todavia, ensinou também em Havard e Stanford.

A dureza do debate entre os candidatos argentinos à Presidência, Massa e Milei, transmitido pela TV argentina no último domingo, nos fez lembrar as disputas presidenciais brasileiras recentes. Apesar de El León (como Milei se imagina) dizer-se anarco-capitalista, na verdade é ultraconservador de direitos e ultraliberal na economia.

Javier jura de pés juntos que é devoto de Tatcher e Reagan, mas no seu altar de orações reza mesmo é para Bolsonaro e Trump, recorrendo a um discurso que mistura valores reacionários nos costumes e um ‘barata-voa’ nas políticas internas e exteriores.

Nesse cenário, Florência Garramuño deixa um recado importante sobre o que acontece na região:… el Brasil se encuentra atravesando uno de sus más dramáticos momentos históricos, con la extrema derecha iniciando um nuevo ciclo americano. Entre el amor y el horror, este livro quiere intervir en ese – también nuestro – presente”.

Em outras palavras, Florência desperta nossa atenção para tempos estranhos que se iniciam, nos quais, entre tangos e sambas, os governantes latino-americanos preferem conversar com cachorros e pregar que a Terra é plana, enquanto negam as chagas políticas fundantes do nosso continente, como a desigualdade social e a devastação da natureza.

Felipe Sampaio: chefiou a assessoria dos ministros da Defesa (2016-2017) e da Segurança Pública (2018); cofundador do Centro Soberania e Clima; foi secretário-executivo de Segurança Urbana do Recife; atual diretor do SINESP no ministério da Justiça e Segurança Pública.

 

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