Opinião

Romance Majestic

 

Há 8 anos, numa cervejaria, eu estava esperando mais três amigos. Quem chegou primeiro foi Stéfanie Sande. Ela estava com um vestido de estrelas e uma jaqueta folgada. Tomamos dois chopes antes de Ramon Carlini aparecer. Finalmente, chegou Matheus Barreto para o bate-papo. Logo de início, perguntei se Stéfanie tinha um palpite para o próximo livro. Ela me respondeu que sim, mas talvez o enredo precisava ser amadurecido. Tratava-se, naquela oportunidade, da história de uma cineasta e de um filme, onde os bastidores eram o elemento central do enredo.

O tempo passou e Stéfanie lançou outros dois livros, ligeiros romances. O primeiro ficcionalizando a biografia de Manoel de Barros e o segundo, contando a paixão entre duas meninas durante a pandemia. Este último, intitulado Virgínia, despertou minha admiração pela leveza com que tangencia a questão do gênero e as múltiplas relações afetivas do contemporâneo. A estratégia de naturalização, diversa do conflito que o tema suscita por força da própria realidade brasileira, foi uma contribuição importante que a autora ofereceu ao contemporâneo, marcado pela abordagem conflituosa. Os milhares de leitores que tomaram contato com Virgínia, distribuído pelo projeto Literamato, puderam entender que há várias frentes num mesmo combate.

E o livro da tal cineasta? Estava engavetado? Parece que sim. Eu e Stéfanie nos encontramos várias vezes nos últimos anos. Na última, ao longo da segunda garrafa de whisky, fiquei sabendo que ela publicaria a prometida história pelo grupo Companhia das Letras. De fato, o selo Alfaguara timbrou o novo romance de Stéfanie Sande – Café Majestic. A autora não me adiantou o texto, mas me relembrou do enredo que estava amadurecendo há quase uma década. Feita a encomenda pelo correio, chegou o meu volume cuja leitura me custou umas quatro horas e a releitura, idem. Para fazer essa resenha, achei conveniente ler uma terceira vez, o que não foi nenhum sacrifício.

Afinal de contas, o romance é bom? Para o leitor, é isso que interessa. O resto é comentário sobre capa, papel e diagramação. O livro é bom. Tem uma aparência fácil, mas esconde intrincadas questões narrativas. “Era uma vez alguém que escreve sobre alguém que escreve sobre alguém”. Em resumo, isso é metaliteratura que tende a ser labiríntica. A história da narradora que quer fazer um filme sobre quem já fez um filme e conta os bastidores de quem já contou bastidores pode levar o leitor ao desespero. Fiz algumas anotações no pé de página do meu exemplar de Café Majestic, desconfiado de problemas de coerência interna. Os capítulos finais esclarecem a estrutura da obra, mas me deixaram uma ponta de dúvida sobre os nomes das personagens em determinado segmento do texto.

Então, só elogios? Não. A postura da crítica emulativa me incomoda não só pela preguiça mental e incapacidade técnica, mas pela falsidade pessoal. A pior atitude que pode tomar um crítico diante de um lançamento literário é gritar bravo, bravíssimo! Calma lá, devagar com o andor que o santo é de barro. Vamos receber a autora com aplausos e o romance, com cautela. Como deferência com uma querida amiga, o que precisamos fazer é reler duas ou três vezes, gastar tempo pensando para fazer uma resenha minimamente honesta. Mas, nem por isso, devemos aplaudir obrigatoriamente. Ao contrário de engrandecer, o elogio corrompe.

Café Majestic está organizado em blocos temporais distintos, mas sobrepostos. A mulher que espera outra, no café que dá nome ao romance, quer filmar uma história publicada sobre os bastidores de um filme. Daí que o leitor será apresentado a realidades distintas de mulheres que convergem para um único homem, onipresente no enredo. A história é triste porque apresenta os padrões do abuso, incluindo menores de idade. Felizmente a temática relevante não é, nem de longe, o maior atrativo para ler Café Majestic. O leitor agudo se desacomoda por razões muito mais profundas que vão repercutir em sua mente por mais tempo que dura a leitura.

“As nuances salvaguardam o que é bom, mas também amenizam o que é ruim”. Esse trecho do romance Café Majestic, claramente metaliterário, provoca tormentosos debates, quase todos inúteis. A estilização é o ponto central da arte, muito embora uma penca de artistas contemporâneos suponha que a expressão artística deva coincidir com a realidade, o que é uma falha de formação intelectual, inclusive. Por isso mesmo, o tema central provoca várias interpretações no romance Café Majestic. Ninguém espere um texto que condene ou absolva as personagens, isso seria decepcionante para mim que conheço Stéfanie Sande.

Assim como Lolita, de Nabokov, o leitor de Café Majestic terá o fato narrado e filtrado no caleidoscópio das vozes que se manifestam. A conclusão depende muito mais da leitura (e dos leitores) do que do próprio texto que, a cada perspectiva, ganha uma dimensão complementar. Ponto para a autora. Infelizmente, não contamos com a voz do pivô que fica em segundo plano, mas os padrões do comportamento dele estão disponíveis para uma avaliação, ainda que indireta. De qualquer forma, o desfecho do romance se mantém aberto, o que me parece indispensável para um bom livro.

Mencionei o escritor russo porque me recordo da tremenda polêmica que despertou ao usar as “nuances” para deixar em aberto a possibilidade de adesão, participação ou cumplicidade das próprias vítimas de abuso. Essa é um debate que, sociologicamente, está mais amadurecido nos dias de hoje, mas vai provocar o mesmíssimo desconforto em Café Majestic. O ponto alto do romance de Stéfanie Sande é justamente esse. Ao avançarem nas negociações sociais com o abusador, as personagens aparentemente pueris ganham complexidade psicológica por meio da ambiguidade moral. Trocando em miúdos, não se trata de um livro em que se opõem mocinhos e bandidos.

A noção jurídica de “inocência” existe na realidade e deve ser reafirmada sem volteios retóricos. A vítima é a vítima e sempre será. No entanto, quando essa noção consolidada no Direito é transferida para a ficção, opera-se um eventual empobrecimento das personagens. Assim como Stéfanie Sande não fez de Virgínia um palco para catecismos sobre gênero, não fez de Café Majestic uma caça ao lobo mau. Essas nuances que “salvaguardam e amenizam” podem servir de alvo para os críticos que esperam a explicitação política no texto literário. Eles que se danem! Não suporto romance programático. Aliás, qualquer cartilha me dá nos nervos. De qualquer forma, o romance de Sande pode ser lido por todos, sociólogos, antropólogos, juristas, mas vai continuar ocupando a prateleira da literatura.

 

 

Eduardo Mahon é escritor.

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