Opinião

Poder desestabilizador

As Forças Armadas não são poder moderador da república; elas têm sido um poder desestabilizador

Por Cristovam Buarque

Na qualidade de Presidente, Lula disse que as Forças Armadas não são poder moderador da república; na qualidade de historiador, ele poderia dizer que elas têm sido um poder desestabilizador da democracia. A ideia de poder moderador surgiu depois do primeiro golpe militar que destituiu D. Pedro II e instaurou no lugar uma democracia sob comando do Exército. Pela constituição monárquica, com governo parlamentar, o Imperador era o poder moderador: em momentos de crise, quando os líderes políticos não se entendiam, o monarca podia dissolver o parlamento e convocar imediatamente novas eleições. Diversas repúblicas dão este poder ao presidente. Nenhuma reconhece este papel aos militares. Seria uma ofensa imaginar que os soldados formados, organizados e pagos para defender o país contra ameaças externas, se meteriam nos imbróglios da política. No Brasil, ao destituírem o Imperador, nossas Forças Armadas, especialmente o Exército, auto assumiram este papel de moderador, e sempre tomando partido de um lado da política – o lado conservador.

Nestes 134 anos de República, o Exército tem sido na verdade um poder desestabilizador da democracia. Ao longo das cerca de 30 eleições nacionais realizadas, quase sempre pesa a suspeita se as Forças Armadas iriam respeitar os resultados, e se respeitariam o mandato do eleito, sem intervirem. Esta ameaça pesa permanentemente sobre nossa história eleitoral. Às vezes para impedir golpes, como Lott, mas quase sempre ameaçando golpes, se o candidato com chances ou o eleito não se enquadrasse nas posições formadas e entranhadas na tropa. As Forças Armadas têm sido um partido político de prontidão, assustando ou cooptando os políticos para atenderem seus desejos.

A república não tinha ainda três anos quando o primeiro golpe foi dado contra o próprio presidente militar colocado no poder. A partir daí, raramente as armas não foram ameaças sobre as urnas. Nos últimos quatro anos, o presidente, eleito como civil pelo voto, não deixou de exercer sua vocação e profissão de militar para ameaçar a democracia se os demais poderes não atendessem seus desejos e se as urnas não o reelegessem. Ficou apenas na ameaça. Faltaram condições políticas internas e externas. Mas é preciso reconhecer que desta vez os militares não cederam às pressões e às tentações de usarem o chamado poder moderador para intervirem no processo eleitoral. Apesar de muitos deles desejarem, nossos militares não foram golpistas. Apesar do Ministro da Defesa levantar suspeitas, não houve intervenção das Forças Armadas para desrespeitar as urnas. Mas pesaram na disputa eleitoral como um fantasma, assustando a democracia. E pagam um alto preço por terem passado a imagem, coerente com o passado histórico de serem poder moderador, intervencionista e golpista. Apesar de provocadores e golpistas, a verdade é que ao longo de 2022, as FFAA, seus comandantes e tropas, para surpresa de muitos, se comportaram democrática e institucionalmente.

Para atender às necessidades de estabilidade futura e aproveitar o desempenho no presente, este pode ser o momento para desfazer a ideia de poder moderador. O governo e o Congresso que se iniciam precisam fazer o que os políticos se omitem há mais de um século: fortalecer as FFAA defensoras de nossa soberania e promotoras de nossa defesa e enterrar de vez o papel de desestabilizadoras, por ação, intenção ou simples imagem. Fazer as necessárias reformas na Constituição, na organização, na distribuição territorial das tropas e das armas, e na formação de militares para que não pese sobre nossas urnas as ameaças de nossas armas. Nem sobre as armas a má fama de golpistas. Até aqui, nossos líderes civis se assustam e temem qualquer gesto de mudança nas FFAA. Este temor é prova de que é preciso mudar. Deve-se aos militares a reforma que nos protegeu em 2022: a reforma durante o regime militar jogando para a reserva os oficiais depois de poucos anos no comando. Sem isto, as FFAA teriam hoje líderes capazes de comandar fora da lei.

Cristovam Buarque foi governador, senador e ministro

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