Opinião

O que eu vi!

Eu já vi 12 presidentes no poder, já vi dezenas de CPIs darem em pizza. Com licença da Covid-19, quero ver no que vai dar tudo isso

Sem entender o significado da cena, vi uma tropa do Exército, munida de tanques de guerra, cercar o Palácio do Campo das Princesas, no Recife, para depor e prender o governador Miguel Arraes na tarde do dia 1 de abril de 1964. Eu tinha apenas 15 anos de idade e estudava no Colégio Salesiano.

Quatro anos depois, vi 300 soldados da Força Pública de São Paulo prender pouco mais de 800 jovens reunidos em um sítio de Ibiúna durante congresso da proscrita União Nacional dos Estudantes. Eu estava entre eles na condição de aluno do curso de jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco.

Como repórter da revista “Manchete”, vi o líder comunista Gregório Bezerra ser libertado no Recife no dia 6 de setembro de 1969 para integrar o contingente de 15 presos políticos trocados pelo embaixador norte-americano sequestrado no Rio. Naquele mesmo dia fui preso, e o embaixador solto no dia seguinte.

Vi ser preso em 1981 o líder metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva. Ele foi mantido em uma das salas do DOPS paulista onde 13 anos antes eu fora interrogado e fichado como subversivo. Escrevi sobre a prisão de Lula como editor assistente da revista “Veja”. E um ano mais tarde, cobri seu julgamento na Auditoria Militar.

Ainda estava na “Veja” quando o último general-presidente da ditadura de 64, João Figueiredo, acovardou-se diante do terrorismo de direita que tentava minar o processo de abertura política do país. Mas foi como chefe de redação do “Jornal do Brasil”, em Brasília, que o vi abandonar o Palácio do Planalto pelas portas dos fundos e pedir que o esquecessem. Foi atendido.

Assustei-me ao saber na noite de 14 de março de 1985 que o presidente eleito Tancredo Neves baixara ao hospital a doze horas de tomar posse. E se os militares, inconformados com o fim da ditadura de 64 que durara 21 tristes anos, aproveitassem a ocasião para dar um novo golpe? Dali a pouco mais de um mês, velei o corpo de Tancredo no mezanino do Palácio do Planalto.

No final de fevereiro de 1986, vi o entusiasmo das pessoas convocadas pelo presidente José Sarney para assegurar o sucesso do Plano Cruzado que congelou salários e preços. Elas lacraram supermercados e deram voz de prisão a gerentes. Estava no Rio, um ano depois, no dia em que Sarney, dentro de um ônibus, foi alvo de pedras porque o plano fracassou.

Assisti ao espetáculo do crescimento de Fernando Collor nos corações e mentes dos brasileiros. Era o “caçador de marajás”, disposto a varrer a corrupção do país. Publiquei artigos no “Jornal do Brasil” chamando-o de “falso brilhante”, mas não vi seu governo agonizar e morrer porque trabalhava em Angola. Fora demitido do jornal cinco dias depois da eleição de Collor.

Em 1994, vi uma preciosa fonte de informações dos jornalistas ser eleito presidente da República e deixar de ser fonte. Meus oito anos como diretor de Redação do “Correio Braziliense” coincidiram com os oito anos de governo do presidente Fernando Henrique Cardoso.

Da Bahia, em 2003, como Diretor de Redação do jornal “A Tarde”, acompanhei a estreia na função de presidente da República do metalúrgico que um dia vira preso no DOPS de São Paulo. Voltei a Brasília 11 meses depois interessado em acompanhar a experiência de um governo de esquerda governar pela direita.

E eu que pensava que já vira tudo!

Vi Lula quase cair quando estourou o escândalo do mensalão do PT, recuperar-se mais tarde a ponto de ganhar um segundo mandato, eleger para sucedê-lo uma mulher que nunca fora candidata a nada, reelegê-la e, por fim, ir para casa ostentando a condição de o presidente da República mais popular da história do Brasil.

Quem faria ideia, àquela altura, que Dilma Rousseff, a primeira mulher presidente do Brasil, seria cassada menos de dois anos depois de reeleita, e Lula preso e condenado por ocultação de patrimônio e lavagem de dinheiro? Pois assim foi. E eu também vi tudo isso de perto.

Como veria ser eleito presidente em 2018 um ex-capitão afastado do Exército porque planejou jogar bombas em quartéis, e Lula ser solto e anuladas suas condenações, recuperando assim o direito de candidatar-se mais uma vez à presidência da República, o que deverá fazê-lo em 2022. Brasil, pátria do aleatório!

Com licença da Covid-19, quero ver no que vai dar tudo isso.

 

Ricardo José Delgado Noblat é um jornalista brasileiro. Formado pela Universidade Católica de Pernambuco, Noblat foi editor-chefe do Correio Braziliense e da sucursal do Jornal do Brasil em Brasília. Atualmente, Noblat mantém um blog, o Blog do Noblat, no jornal Metrópoles.

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