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O pé de jaca da minha infância

Saímos pela manhã, era um sábado que parecia tornar-se quente, como os outros aqui na minha terra. Peguei carona com meu tio e sua esposa, um casal perfeito, morenos, cabelos enrolados, mas um deles estava liso. Brincalhões e piadistas. Ainda passamos ali e acolá para pegar mais dois caronistas, um casal de sobrinhos da esposa do meu tio, e comprar alguma coisa que estava faltando. Eram jovens estudantes, também morenos e falantes. Era o mês do carnaval, que teria apenas 28 dias naquele ano.
Retas, curvas, serras, descampados, plantações, cerrados e muitos buracos na estrada. Meu tio parecia conhecer todos eles, porque chegou até a estrada de terra sem amassar as rodas do carro. Muita conversa e muita música sertaneja atual. A moda era melodias cantadas por mulheres em situações de traição, cachaçadas, pegação, amor e essas coisas do dia a dia moderno. Gostei da voz de uma delas, lembrava a voz rouca da Roberta Miranda. Bem, não deveria falar que eu também era um moreno, para abrasileirar-me, com alguns fios do cabelo carapinho que já mudavam de cor, cinquentão, que ia beber na fonte da cidade natal, lá no interior de Mato Grosso, mas que alimentava minha alma e inebriava-me das lembranças de outrora, como a hospitalidade, frutas, rios e cachoeiras.
Nova estrada, muita areia, costelas de vaca, carreiros, trilhas, lombadas e muitos pés de pequi naquela rodovia de terra batida, que leva ao colosso do meu mundo. Paramos para catar pequis e em dois pés já alcançamos o objetivo. Os periquitos, papagaios e até araras ajudaram a derrubá-los, além do amadurecimento ali desencadeado. As mesmas músicas, ou eram as melodias e composições parecidas já me entediavam, mas o carro e o som eram dos tios, e eu era apenas um usuário, optei em ficar pensando noutras coisas longe dali, bem longe mesmo, inclusive do tempo. Voltei ao meu tesouro, meu rincão da infância e adolescência. Quando passou pela minha cabeça o pé de jaca-dura, que tinha na frente da casa dos meus pais. Muita sombra, muitas brincadeiras, escaladas e o mais gostoso, o sabor daquela fruta que tanto adoro. Torcia para que houvesse frutos maduros para eu saborear. Iria colocar em prática tudo que aprendi sobre aquele fruto, inclusive a nova técnica de como abrir e desfavar uma jaca, sem ficar todo pegajoso, que assisti pelo YouTube. Essa lembrança me trazia o seu cheiro inconfundível, a sensação de pegar na aspereza amarela da sua casca ovalada, o peso, a polpa amarelada e saborosa, cremosa, os bagos. Também havia os cremes, doces, batidas e outras guloseimas produzidas pela minha saudosa mãezinha. Sem contar, que também comíamos os talos que ficavam entre os bagos, quando o consumo era maior que a produção, e os caroços após o cozimento. Bom, chegamos ao destino.
O pé de jaca-dura estava lá, não foi consumido pelo tempo e nem pelos humanos. A casa não era mais da nossa família, mas o meu coração palpitou e duas lágrimas brilhantes, incolores, límpidas e muito dolorosas escorreram na minha face e descobrir que eram salgadas. Lubrificaram meus olhos, alimentaram minha alma e deram sabor à minha vida. Cumprimentei os novos donos daquela propriedade e consegui autorização para apanhar um fruto. Claro que peguei o mais belo, mais robusto e outros adjetivos que não consigo explicar. Levei para a casa dos meus tios, a fim de degustar, antes, porém, iria proceder todo o ritual que aprendi para abrir aquele fruto.
Arrumei um banquinho e fui para o quintal da casa. Peguei uma bacia de flandres areada com esmero pela minha tia. A faca peixeira que amolei numa pedra de afiar escolhida na serra vizinha, que meu tio mantinha próximo à bica d’água. Recuperei o fio do instrumento e já me preparava para o tão esperado procedimento. Uma luzinha acendeu na minha cabeça e o saudosismo me fez incorrer ao processo rudimentar. Não havia esquecido como cortar uma jaca. Fi-lo aos poucos, em cortes comedidos, precisos, como se fosse um grande cirurgião usando seu bisturi especial. Aquele cheiro adentrou em minhas narinas e me embeveceu. Esqueci todos os estudos dados pela web e coloquei minhas mãos em ação. Comi aquela pasta suculenta como um fausto. Enfastiado deitei-me à rede armada à sombra dum pé de manga, com minhas mãos pegajosas, minha mente desacelerando e numa paz interior sem igual.

Hermélio Silva – Formado em Marketing, escritor  e

Membro fundador da Academia Rondonopolitana de Letras – ARL,

cadeira nº 06. 

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