Opinião

O papa é argentino, mas Deus ainda tem uma queda pelo Brasil

A história do golpe deve ser contada como ela de fato se passou

Ricardo Noblat

Fábio Vieira/Metrópoles

Eu e Bolsonaro fomos vítimas, na quarta-feira da semana passada, de um desconforto intestinal. Ele internou-se em um hospital de Brasília; eu, que estava em São Paulo, em um hospital de lá.

Isso aconteceu no dia em que vazou parte da delação do tenente-coronel Mauro Cid sobre as reuniões entre Bolsonaro e os comandantes militares em novembro de 2022. Em pauta, o golpe.

Bolsonaro disse que por recomendação médica não responderia a perguntas sobre a delação de Mauro Cid. Como os médicos que me atenderam nada disseram, escrevi sobre a delação.

Meu desconforto intestinal passou, e creio que o de Bolsonaro também. Mas ele continua em silêncio sobre o que revelou Mauro Cid, o que mostra que seu desconforto é de outra natureza.

Padece do mesmo mal o desaparecido almirante Almir Garnier, ex-comandante da Marinha que, segundo Mauro Cid, foi o único dos chefes militares a bater continência para o golpe.

A poucos dias de Bolsonaro fugir para os Estados Unidos, em 30 de dezembro, sem passar a faixa presidencial a Lula, Garnier gravou uma mensagem dirigida à sua tropa em que afirmou:

“Nem sempre conseguimos fazer tudo que queremos. Muitas vezes queremos navegar em direção ao porto seguro em linha reta, mas a tempestade nos impede, e temos de navegar de acordo com o que aprendemos para contornar furacões.

 
Mas saibam os senhores que a manobra de tempestade girará novamente o barco em direção ao porto seguro que queremos. E lá nós chegaremos, pode demorar um pouco mais, mas chegaremos. O importante é que estejamos unidos.”

Àquela altura, o mais bolsonarista dos comandantes das três Armas sabia que o golpe fracassou. Garnier chegou a ser citado em reportagem do jornal em língua inglesa “Financial Times”:

“Um alto funcionário brasileiro que esteve intimamente envolvido lembra que o ministro da Marinha de Bolsonaro, almirante Almir Garnier, era o mais ‘difícil’ dos chefes militares. ‘Ele ficou realmente tentado por uma ação mais radical’, diz.

‘Então tivemos que fazer muito trabalho de dissuasão, o Departamento de Estado e o comando militar dos EUA disseram que iriam rasgar os acordos [militares] com o Brasil, desde treinamento até outros tipos de operações conjuntas’”.

Sem sucesso, Bolsonaro pediu ajuda ao presidente americano, Joe Biden, para se reeleger. Emissários de Biden visitaram o Brasil para dizer aos comandantes militares que não haveria apoio ao golpe.

Em nome dos seus governos, embaixadores de países europeus advertiram seus interlocutores para o risco de o Brasil ficar isolado internacionalmente caso a legalidade por aqui fosse rompida.

Foram as pressões internacionais, mais do que eventuais compromissos dos chefes militares com a democracia, que enterraram o golpe que Bolsonaro pretendeu aplicar.

Reconhecer isso não é ser injusto com os militares, é contar a história como ela se passou. Os militares não são uns coitadinhos que a contragosto acabaram arrastados para o lado de Bolsonaro.

Aderiram a Bolsonaro de livre e espontânea vontade. Com ele, voltaram ao poder pelo voto. E do poder não pretendiam sair. O papa é argentino, mas Deus ainda tem uma queda pelo Brasil.

Ricardo Noblat é jornalista

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