Opinião

Flordelis, a musa do novo Brasil

  

O nome já é maravilhoso. Junto com ele, as sobrancelhas marcadíssimas e micropigmentadas anunciam o que vem por ali

Autoconhecimento é uma coisa boa. Pra todo mundo. E é ele que me faz concluir que, entre todas as personagens recentes da nossa história, essa Flordelis (não entendo porque escreve junto, mas também conheço uma Anapaula assim) talvez seja a que mais representa os valores do Brasil contemporâneo. Tem tudo a ver, é musona máxima. Inclusive orna esteticamente, traduz religiosamente e explana comportamentalmente o nosso normal nem tão novo assim. Que Sara Inverno que nada! É ela que representa, goste você disso ou não.

O nome já é maravilhoso. Junto com ele, as sobrancelhas marcadíssimas e micropigmentadas anunciam o que vem por ali. E dizem que é peruca, mas eu não sei. Possivelmente, sim. Seja como for, o “louro” falsíssimo e os fios alisadíssimos fazem muito sentido na cabeça da mulher negra embranquecida, apertada nos terninhos terrivelmente evangélicos. É a caracterização perfeita, enfim. Tendência, convenhamos. Conhecemos muitas assim. Mesóclise ambulante, referência irretocável para os filmes de época que escafandristas de comportamento farão de nós, no futuro, se um futuro houver. Há de haver?

Entregamos o microfone a Flordelis e abrimos as caixas de som. Volume máximo, evidentemente. Microfonia ensurdecedora. Assim como os gritos da “pastora” pois, como sabemos, para alguns, Jesus é surdo e precisa ser louvado em muitos decibéis. Para estes, o beabá da família tradicional brasileira precisa ser gritado também pro povo entender. Com muita raiva, sei lá o porquê. Mas é tudo baseado na Bíblia que poucos lêem (pra quê?) já que os “tradutores da palavra” existem justamente pra contar o que está escrito ali. Segundo eles, Jesus transformou água em suco de uva (e eu cresci achando que era vinho), viado não pode, sapatão não pode, bater em mulher é compreensível. À mulher que apanha, cabe rezar. Ou “orar”, como se diz, agora, no Brasil.

Flordelis sabe e ensina: não pode se separar pra não escandalizar Deus. Mas Deus não se escandaliza com quem se envolve sexualmente com menores (também deve estar na Bíblia, não sei) nem com quem junta os filhos tudo pra matar o marido da mãe. Dizendo ela que Deus discorda de aborto, mas pelo jeito não liga pra assassinato. Ah, esse Deus tão intrigante criado à imagem e semelhança de um Brasil incompreensível, pelo menos pra mim. Tô com dificuldade de acompanhar, mas o problema deve ser meu.

Dizem que tinha suruba sagrada, na casa de Flordelis. Que parte dos trabalhos religiosos envolvia sexo quentíssimo. Com ela, com as filhas, com todo mundo. Achei contemporâneo. Não a suruba que é uma instituição ancestral, mas a suruba vintage com Deus no meio é, sim, tendência comportamental. Essa com narrativa contraditória, que sempre existiu, mas andou fora de moda com o crescimento das liberdades individuais. Agora – que nem topless no Porto da Barra pode mais – voltou com força total.

Fetiche que chama, né? Deve dar tesão gritar “viado não é coisa de Deus” e transar com o bróder, por exemplo, esse comportamento tão comum. Ou “prostituição é do demônio”, mas oferecer a filha em troca de uns favorzim. Sei lá, deve bater uma onda diferente dentro da cabeça. Imagino, mas não sei. Nunca experimentei assim. Sou das antigas, tenho essa mania fora de moda de alinhar discurso com prática e tal. Caidérrima, estou. Velha mesmo. Imagine você que pedi separação, escandalizei Deus em vez de apenas matar meu ex. Não sei se mereço salvação.

Flordelis volta já, vai ali buscar a tornozeleira, item fashion que faltava. Indispensável e tão natural que o ex-prefeito de uma cidade que conheço disse que mostra a dele para quem quiser ver. Segundo o próprio, o acessório é a prova cabal de que ele “cumpre as regras”. E eu, besta, achava que era justamente o contrário. Desculpa aí. Vivendo e aprendendo com esse novo Deus, com esses novos ídolos que despontam, a exemplo do “goleiro” Bruno que alimentou os cachorros com o corpo da mãe do próprio filho. Se eu vejo que uma criatura dessa vem andando na minha direção, saio correndo a mil. Mas, no Brasil contemporâneo, o povo vai lá e pede self. Tá suave, parece. Eu é que sou antiga demais.

Não vou me adaptar principalmente com as sobrancelhas, a peruca e os terninhos. Deu ruim pra mim. Mas preciso reconhecer que Flordelis merece, além do filme que já teve, pelo menos uma seriezinha na Netflix. Um busto em bronze, sei lá. Citações nos paredões. Moderna é ela toda. Eu, que tô velha, continuo achando que Deus é o amor, que nada justifica matar alguém, que não vale sexo com menor de idade (muito menos se fosse meu filho) e que tornozeleira eletrônica é um item vergonhoso no figurino de qualquer um.

No lugar de musa, ainda prefiro Leila Diniz que transava com quem queria e assumia porque sim. Então, sigo no meu quadrado, de cabelos desgrenhados, sobrancelhas naturais e shorts jeans, acompanhada pelos meus amores e dizendo aos que parecem loucos, antiquados e deslocados: “você me abre seus braços e a gente faz um país”. Paralelo, que seja. Tudo bem pra mim.

(Eu sei que nem todo cristão é assim)

Artigo: Flavia Azevedo

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