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Depoimento: Ex-piloto da Varig conta como sobreviveu ao pouso forçado de um Boing na selva amazônica

Eu expliquei que íamos levantar o bico do avião para a copa das árvores ajudarem na desaceleração do Boeing. Elas amorteceriam 53 toneladas de aço a centenas de quilômetros por hora. Eu disse ao comandante que quando sentíssemos que ia haver o impacto, abaixaríamos as cabeças para evitar sermos degolados.

O primeiro motor parou e logo o segundo. Era hora de agir. A manobra tinha que ser feita com toda atenção e calma.

Ter um plano e ficar apavorado pode levar à perda de sustentação do avião ou a um pouso forçado começando com muita velocidade, fazendo a fuselagem arrebentar.

Ouvi aquele “tchá, tchá, tchá”. Era a barriga do avião arrastando na copa das árvores. O Boeing 737 deslizou até que um estrondo na direita, meu lado, indicou que a asa acertou uma das árvores e já era. Não havia mais nada que pudéssemos fazer. Sem a asa é impossível qualquer manobra.

O avião começou uma curva para a direita até que outra árvore arrancou a asa esquerda. Seguimos reto. Sobrou só o charuto do avião que encaixou entre os troncos da selva.

Eu acordei com um galho bem próximo do meu rosto. Olhei para minha esquerda e tinha um senhor inerte. Foi a única pessoa que faleceu no pouso e porque estava em pé no corredor. As outras 11 morreram ao longo dos três dias na floresta em função de ferimentos. As cadeiras se soltaram e foram lançadas para a frente do avião causando lesões e fraturas nos passageiros.

Retomei a consciência e fiz uma avaliação dos meus ferimentos. Eu estava todo quebrado. Perna e clavícula arrebentadas, uma fissura craniana e o lado direito do meu corpo paralisado. Eu passei o tempo todo deitado. Dormia, acordava e dormia de novo. O corpo entra num estado de autopreservação.

Assim como eu, vários dormiam. As pessoas que estavam menos piores é que organizavam as coisas. A paralisação me deixou limitado naqueles três dias de sobrevivência na selva. Eu estava tão ferido que lembro das pessoas falando “tira o piloto do sol, põe o piloto na sombra”. Foi brabo.

Zero à esquerda fez diferença

Eu não deveria estar naquele avião. Era um domingo em que o Brasil enfrentaria o Chile no Maracanã valendo vaga na Copa do Mundo da Itália, em 1990, e houve problema na escala de pilotos. Aceitei o voo e quebrar um galho porque era daqueles funcionários que vestem a camisa da empresa.

Peguei uma rota pinga-pinga com o trecho final Marabá/Belém, que deveria durar 50 minutos. Tanto o comandante quanto eu percebemos que algo estava errado depois de 45 minutos de voo. A previsão era estar sobre Belém naquele momento e ainda nem avistávamos a cidade. Não sabíamos, mas éramos a oitava dupla de pilotos da Varig a cometer o mesmo erro.

Recebemos o plano de voo e o campo da proa indicava 0270. No painel de controle do avião havia espaço para três dígitos e descartamos o primeiro zero. Afinal, zero a esquerda não vale nada. Selecionamos 270 e decolamos às 17 horas.

A Varig havia acrescentando uma quarta casa, mudando um padrão da aviação mundial, em 1º de julho de 1989.

Mas o procedimento foi mal explicado. Até o nosso voo, que foi em 3 de setembro, outras sete duplas de pilotos que fizeram Marabá/Belém erraram a mesma coisa. Nós digitamos 270, assim como eles, e fomos na direção oeste. O correto seria seguirmos para o Nordeste [proa 027].

A última casa era uma vírgula e deveria ser descartada quando não houvesse quatro espaços para selecionar no painel de controle.

Atitudes que “afundaram” o voo

Outro fator que contribuiu com o acidente foi não existir radar na Amazônia naquela época. Nós não sabíamos onde estávamos e a torre de controle do aeroporto de Belém não podia nos encontrar. Depois de voar 50 minutos e não chegar a Belém, disse ao comandante que deveríamos voltar.

Ele usou o currículo para se impor. Falou que tinha 15 anos de Varig e 6.000 horas de voo no Boeing 737. Acrescentou que eu estava no meu primeiro ano de empresa e era um jovem de 27 anos com míseras 680 horas naquele modelo de avião.

Aí foram tomadas posturas e atitudes que foram afundando o voo cada vez mais. Ficamos andando sem rumo e queimando combustível. Um erro. A gente aprende, ainda no começo da escola de aviação, que se voou de A para B e não encontrou B, que se volte à origem.

Para complicar, eu não sabia qual era nosso erro. Fui descobrir muito tarde, duas horas depois da decolagem ao ver um documento que aparecia proa 027. Já era noite e voávamos sobre a Amazônia. O combustível estava acabando e nosso destino, traçado.

Eu estava na cabine de comando, mas não sinto culpa pelo acidente. Eu fiz tudo que podia naquele voo. Tanto que fui submetido a uns 30 testes psicológicos depois do pouso forçado e todos apontaram que minha cabeça estava normal. Também nunca sonhei com o acidente, nem fiquei com trauma de avião. Tenho minhas habilitações em dia até hoje e continuo achando voar uma delícia.

Mas não significa que passei ileso por tudo isto. Tive muita depressão, angústia e tristeza. Muito de tudo que é ruim. Até o dia em que eu tomei consciência que não adiantava nada eu ter este tipo de sentimento porque não ia conseguir mudar o passado.

Levou uns oito ou nove anos até entender onde tudo deveria ficar — no passado. E fui tomando outro rumo. Meu coração acalmou e a vida, finalmente, seguiu.

Acho justo eu ter uma existência em paz porque precisei lutar muito pela minha vida. Fiquei o tempo inteiro imóvel e precisava dos outros até para fazer as necessidades.

Mesmo assim, não pensava em morte. Nem quando um dos companheiros perecia. Perder um integrante do grupo era uma sensação horrorosa, mas dentro daquele contexto era uma situação possível. E se eu entrasse em pânico, seria o próximo.

Nestas ocasiões, é mandatório ser positivo porque o negativo está exposto na sua cara. E o que faz ter força é o carinho das pessoas. Aquele amor universal. O menos ferido ajuda o mais machucado com palavras, abraço e esperança. Ninguém julga, ninguém reclama. Todos unidos em sobreviver.

As pessoas ouvem este relato e logo perguntam se senti fome. Isso você administra. Todo mundo tem uma gordurinha que serve de reserva. Mas as pessoas não têm ideia do que é sentir sede porque temos água muito a mão. É dilacerante.

Eu conversava sobre isso com um passageiro, o Afonso, único de nós que tinha conhecimento de sobrevivência em selva. Disse que o maior desejo da minha vida era tomar um copo d’água e sentir ela escorrer pelos cantos da minha boca. Assim que terminei de falar, um pássaro cantou.

– O pássaro está me dizendo que tem água para lá. Eu vou trazer água para o senhor.

– Não brinca. Isso é coisa séria Afonso.

– É verdade. Vou trazer água para o senhor.

E, de fato, ele voltou com água. Encontrou um riacho de água barrenta e deliciosa. Quando o Afonso me entregou o copo eu chorei.

Sentir sede é muito ruim.

Resgate é um abraço de mãe

Na manhã do terceiro dia, o Afonso subiu numa árvore bastante alta e deu a direção de uma fazenda. Ele e outras duas pessoas que estavam em melhores condições saíram em expedição. Na noite, aparece o pessoal de busca e salvamento. O sentimento que eu tive é exatamente este que vou falar para você.

Sabe um filho quando está perdido? Ele está angustiado, chorando. É um filho pequeno que se sente indefeso. Eis que a mãe aparece, sorri e abre os braços.

E o filho, quando se dá conta que a mãe está ali, responde com outro sorriso e saí correndo em direção a mãe. O filho sabe que será protegido.

É exatamente esta a sensação quando o pessoal de busca e salvamento chega.

NILSON ZILLE: COLABORAÇÃO PARA O UOL, Site Parceiro

EugÍnio Novaes/Folhapress Ken Graham/Getty Images Ken Graham/Getty Images Marcio Arruda/Folhapress

 

 

 

 

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