Opinião

A Igreja é perseguida sempre que defende os sem-vez e sem-voz

O caso do padre Júlio Lancellotti à luz da passagem do 25º ano da morte de Dom Hélder Câmara, o “bispo vermelho”

Por Ricardo Noblat

O vereador Rubinho Nunes (União Brasil) diz ter o apoio de 30 colegas na Câmara Municipal de São Paulo para instalar uma CPI que investigue o trabalho de ONGs na Cracolândia. Quer que entre os primeiros interrogados esteja o padre Júlio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua:

“Tenho mais de 30 assinaturas). Protocolei com 25, em 30 minutos no plenário eu já juntei 25 assinaturas. Agora, já tenho mais 30 para abrir a Comissão. Eu preciso de 28. Deve ser a primeira CPI do ano a ser instalada”.

Precisar de 28 assinaturas para instalar uma CPI e dispor de 30 ou um pouco mais, não é garantia alguma de que na hora do vamos ver, sob pressão de todos os lados, parte dos vereadores que assinaram o pedido de criação não retire suas assinaturas. É comum acontecer.

Vereador de primeiro mandato, ex-fundador do Movimento Brasil Livre (MBL), Nunes tentou em dezembro convocar o padre Júlio para depor por meio de uma frente parlamentar, mas o regimento da Câmara não lhe concedia tal poder. Não é isso o que ele diz, mas sim:

“O padre recusou-se a comparecer. Disse que a competência seria de uma CPI. Então, está aí. Agora, o padre tem uma CPI e vai ter que ir. Se não quiser ir de boa vontade, no convite, a gente pode convocar e levar ele com força policial.”

 

“O padre Júlio e muitos lucram politicamente com o caos instaurado na Cracolândia. A CPI vai investigar essa máfia da miséria que se perpetua através de ONGs esquerdistas.”

O padre atua junto a menores infratores, detentos em liberdade assistida, pacientes com HIV/Aids e populações de baixa renda e em situação de rua. Em 1991, fundou a “Casa Vida I” para acolher crianças portadoras do vírus HIV. O projeto teve como madrinha Diana, Princesa de Gales

‘Quando você está do lado dos indesejáveis, você é indesejável também”, diz o padre, vítima em 2007 da denúncia feita por um casal de que abusara sexualmente de menores. A polícia concluiu que a acusação era falsa. A Justiça condenou o casal a 7 anos de prisão pelo crime de extorsão.

No ano passado, o padre Júlio, o deputado Guilherme Boulos (PSOL) e mais seis ativistas sociais ingressaram na Justiça com uma ação civil pública contra o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), para impedir o confisco de barracas da população que vive nas ruas da cidade.

Boulos é candidato a prefeito de São Paulo, e Ricardo Nunes à reeleição, com o possível apoio de Bolsonaro. O padre Júlio não esconde que apoiará Boulos, também apoiado por Lula. Nunes, o vereador, pretende renovar seu mandato. Ao fim e ao cabo, a CPI poderá não passar de uma flor de curta vida.

“Sempre que procura defender os sem-vez e sem-voz, a Igreja é acusada de fazer política”, disse o ex-arcebispo de Olinda e Recife, chamado pelos generais da ditadura militar de 64 de “o bispo vermelho”. Padre Hélder, como ele assinava sua correspondência particular, morreu em agosto de 1999.

Cultivou e foi o xodó da direita até assumir a arquidiocese de Olinda e Recife em 11 de abril de 64, menos de 15 depois do golpe, e anunciar em praça pública:

“Ninguém se espante me vendo com criaturas tidas como envolventes, perigosas, da esquerda ou da direita, da situação ou da oposição, anti-reformistas ou reformistas, anti-revolucionárias ou revolucionárias, tidas como de boas ou de má fé. Ninguém pretenda prender-me a um grupo, ligar-me a um partido, tendo como amigos ou seus amigos e querendo que eu adote as suas inimizades. Minha porta e meu coração estarão abertos a todos.”

A partir dali, foi se tornando o xodó da esquerda. Indicado quatro vezes para o Prêmio Nobel da Paz pelo seu combate à ditadura no Brasil, foi a primeira voz da Igreja a denunciar no exterior que havia tortura aqui. A censura proibiu qualquer menção ao seu nome durante 9 anos.

No encontro em que concedeu a benção de Natal para a cúpula da igreja em dezembro de 2020, o Papa Francisco recordou a frase mais célebre de Dom Hélder, que se dita hoje, no tempo das redes sociais, viralizaria:

“Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo; quando pergunto por que eles são pobres, chamam-me de comunista”.

A frase sairia bem da boca do padre Júlio.

Ricardo Noblat é jornalista

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