Política

Os dois discursos de Lula.

“O poder é como o violino, toma-se com a esquerda e toca-se com a direita”.

Luiz Inácio Lula da Silva (PT) passa por TV com os dizeres Lula eleito presidente do Brasil - Metrópoles

Em espaço de pouco mais de uma hora Lula fez dois discursos distintos. Tanto em relação ao público alvo como na mensagem. O primeiro, lido em um hotel próximo à avenida Paulista e com a presença da imprensa mundial, foi pronunciado para a nação e a comunidade internacional. Difícil encontrar alguma palavra fora do lugar nessa peça, provavelmente escrita a várias mãos. Ali estava o Lula pacificador, pregando uma verdadeira concertação nacional, sintetizada na sua frase “não existem dois Brasis”, que foi estampada na primeira página dos jornais do dia seguinte. E também na promessa de governar para os 215 milhões de brasileiros.

Essas palavras guardaram coerência com a afirmação, feita às vésperas do segundo turno, de realizar um governo além do PT. Na mesma linha, pregou a paz e a união e reconheceu a Constituição como o grande elemento que rege nossa existência coletiva. Suas palavras soaram como música no mundo político, na mídia e em vastos setores da sociedade civil cansados do clima de beligerância dos últimos quatro anos.

Uma hora em meia depois, estava em cima de um palanque em uma Avenida Paulista lotada por um público de esquerda, a esmagadora maioria militantes do Partido dos Trabalhadores. Parecia outro Lula. Em vez do pacificador, quem discursava era o líder partidário, pregando, de forma subjacente o “nós contra eles”, jactando-se de ter derrotado os “fascistas”, dando ênfase a uma agenda identitária e de esquerda.

É comum ser generoso com o vitorioso e poucos registraram a contradição entre os dois discursos. Uma exceção foi o cientista político Marco Aurélio Nogueira, da Unesp: Foi um discurso de alto nível, de Estado. Horas depois, o Lula que surgiu na Avenida Paulista foi o líder partidário, inteiramente entregue à corrente magnética que se espalhava perante o palanque. O orador vibrante, quase demagógico, disposto a religar os fios da história que teriam sido rompidos pelos “golpistas” que “impicharam” Dilma Rousseff, incendiou a avenida e deixou algumas interrogações soltas no ar. Ali, quase ao final da noite, Lula foi mais “ameaçador” do que “pacificador”.

Uma explicação para a dicotomia discursiva está na complexidade e heterogeneidade da amplíssima frente democrática, responsável pela sua vitória no segundo turno. A decantada ameaça à democracia, expressa na candidatura adversária, levou a estar no mesmo palanque Guilherme Boulos e João Amoedo, além de Simone Tebet e os economistas do Plano Real.

É uma incógnita saber como essa heterogeneidade se materializará na composição do governo Lula e, sobretudo, nos seus rumos. Devemos ter um governo em disputa, no qual ainda não está claro qual tendência seguirá. Se um governo verdadeiramente de união nacional ou um PT puro-sangue enxertado por partidos-satélites, como aconteceu no passado.

Lula é um animal político e sabe sentir a direção dos ventos. A realidade objetiva desnuda inúmeras dificuldades que estão logo ali na esquina. Tem razão o diretor-executivo da consultoria de risco Eurásia, Christopher Garman, ao antever que o novo governo terá uma lua de mel curta e taxa de aprovação mais baixa. Ele alinhava dificuldades praticamente incontornáveis para o sucesso de um governo de reconstrução nacional.

 
Mesmo assim o realismo político impõe a necessidade da realização de um governo de centro. Diferentemente de 2002, quando recebeu das mãos de Fernando Henrique Cardoso um país organizado e pronto para o crescimento, Lula herdará de Jair Bolsonaro uma nação a ser reconstruída em diversos campos. É necessário restaurar a educação, a saúde, a cultura, os órgãos fiscalizadores, a relação com os outros poderes e com o mundo.

O horizonte não será nada róseo em 2023. A melhoria do ambiente econômico pode não ser sustentável se uma bomba fiscal explodir. Ela impactará nos juros, na inflação, no desempenho da economia e no desemprego. Para evitar a sua explosão torna-se premente o futuro governo definir qual será sua âncora fiscal.

E como conciliar a responsabilidade fiscal com a demanda social reprimida que Lula prometeu a atender? No curtíssimo prazo terá de encontrar recursos para garantir o auxílio de R$ 600, a Farmácia Popular, a merenda escolar e reajustar a tabela do SUS. E ainda isentar imposto de renda para quem ganha até R$ 5 mil, conforme prometeu. A base social que compõe seu braço esquerdo irá pressionar para o atendimento de sua demanda, mas essa conta fecha?

Agregue-se ainda as dificuldades políticas. O país saiu das urnas praticamente dividido ao meio, com parte significativa dos brasileiros descrente das instituições. Ao mesmo tempo, o Congresso eleito tem um perfil de centro-direita. Esse campo político saiu das urnas ocupando importantes casamatas para uma guerra de posições que pode se estender até 2026. Entre elas, os governos de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Ou seja, a priori, surge uma oposição de direita robusta, com capilaridade na sociedade e no mundo da política.

O realismo político impõe a necessidade de muita negociação, moderação e da prevalência do espírito do discurso pacificador em vez do discurso ameaçador.

A alternativa a um governo de centro, ou de união nacional, é o governo puro-sangue para atender ao radicalismo das bases. Se for por aí, o terceiro turno estará instalado nos primeiros dias após a posse. Em outras palavras, como político experiente, o novo presidente deveria levar em consideração as sábias palavras de Esperidião Amin: “o poder é como o violino, toma-se com a esquerda e toca-se com a direita”. Ou Lula não agiu assim em 2002, quando escolheu Palocci e Meirelles e deu continuidade à política econômica de Fernando Henrique?

Hubert Alquéres é secretário da Educação de São Paulo e membro da Academia Paulista de Educação.

 

Foto: Fábio Vieira/Metrópoles

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